quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Para India Song

          Aquele vestido vermelho. Longo. Ela em frente ao espelho. Cada detalhe de seus cabelos ruivos, de suas jóias, de seus cetins. Ele aparece também. Os dois se abraçam e dançam dançam dançam deslizam uma elegante melancolia. As vozes em off narrando o que eles não podem dizer. As vozes em off  revelando tudo. Três vozes suaves e curiosas. Uma delas segura de si, segura de tudo, a voz da criadora.
            Ela é linda e triste. Ela é rica e desolada. Ela não sente mais nada. O coração amortecido. Ele é seu amante. Ela tem muitos amantes. No palácio estão todos eles. Convidados seus e de seu marido. Ela abriga todos eles. O salão é imenso. Vazio.
            Apenas um homem no mundo não consegue seu amor. Ele a deseja tanto. Ele sente-se injustiçado, desprezado, traído. Ele grita cada vez mais alto. Ele grita o verdadeiro nome dela: Ana Maria Guardi. Ela ri enquanto abraça um dos homens elegantes do salão e espera que o abandonado seja jogado na rua. Ainda ouve seus gritos por muito tempo. Gritos cortantes e desesperados. Aquela voz que a faz lembrar do terrível medo da loucura. Aquele medo que a persegue desde a infância.
            Ouve-se o piano a todo momento. Ouve-se aquela melodia lenta, rastejante, líquida, impregnada de suor, transpassada por um desejo quase doentio. Por um calor incontrolável. Por uma tristeza desconhecida. Por uma ânsia de vida e um sonho de morte. A explosão musical de ser mulher e ser inteira. É India Song. O que toca é India Song. O que permeia o vestido vermelho, a dança, o gozo, a saudade longínqua é India Song. A voz rouca e poderosa da cineasta escritora mulher onipresente clama por India Song.


           


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Ruído



Os galhos secos apontados
sob as folhas amareladas
Crash Crash
dilaceradas.
Esmagadas pelo sapato tamanho 44
do menino vazio.
Seus olhos transparentes
lacrimejando.
Resposta ao lago recém-seco
reflexo do antigo lago esverdeado
abundante.
Recém-esquecido.
Gotinhas tímidas de chuva
respingam nos óculos quadrados
3 graus e meio
Pling Pling
escorrendo
no olhar vazio.
Vem abaixo
com suas longas pernas.
Esparrama-se o menino
sobre a grama quase anêmica
verde ressecada
áspera
roça a pele
de dois braços vazios.
Pinicando, arranhando, cutucando
Tic Tic
As unhas longas coçam os pelos ralos.
Suspira o menino
Respira o ar pesado
massa cinza
sob os prédios.
Vazio.
Adormece sob a chuva ácida.
Revira-se no mato
Mergulha no azul do sonho antigo.
Sorri de leve, olhos fechados.
Gotinhas em forma de estrela
atravessam as palmas estiradas do menino vazio.
Inundam o solo
renascendo o lago
cessando a sede
preenchendo os poros do menino adormecido.
Anoitece mais uma vez na cidade seca.
Rrr Rrr
Ronca o menino.
Esvazia o peito
abre os pulmões
inspirando fundo.
Ai Ai
Sonha o menino.



domingo, 17 de janeiro de 2016

A Dor é Brega

Do toque sagrado das mãos suaves
Dos dedos leves
Do corpo frágil
sobrepondo-se ao meu
é do que sinto mais falta.

Das gargalhadas
sorrindo aberto
mostrando os dentes
escondendo o acanhamento
é do que sinto mais falta.

Das palavras certeiras
em momentos precisos
e dos olhos atentos
fugindo dos óculos
procurando respostas
eu também sinto falta.

Falta muito.
Falta a presença
Falta o mergulho
Falta sentido
Sobra saudade
Falta constância.

Queria te levar no colo
e apertar-te junto ao peito
pra que ouvisse bem de perto
um coração em descompasso
desembalado
cambaleante
latejando sem consolo
em chagas derramado.