São
três da tarde. Ele está debaixo do sol usando um chapéu de palha. Ele entra e
sai do seu quartinho de ferramentas e bugigangas. Minha mãe diria velharias. Eu
diria antiguidades. Quando éramos crianças, eu e minha irmã chamávamos o
quartinho de casinha. Era uma espécie de depósito onde se guardava tudo que não
tinha mais lugar dentro de casa. Da casa de verdade.
Quando nos mudamos a casinha
dividiu-se em duas. Transformou-se nos dois quartinhos no quintal. Um era o
depósito e o outro virou o quartinho do meu pai. Ali tem de tudo. Não só o que não
tem mais espaço dentro de casa, mas também aquilo que nunca entrou. Todas as
tralhas- diria minha mãe outra vez-, que ele acha por aí, na rua, na estrada,
no mato durante as pescarias; objetos sempre úteis para ele de alguma forma e
às vezes outros itens exóticos, estes sempre compartilhados comigo.
Minha irmã nunca deu bola e minha
mãe nunca teve paciência. A disposição para as pedras coloridas ou engraçadas
ou de formatos estranhos, para as frutas esquisitas, para as revistas antigas,
para as moedas desenterradas, para as sementes de plantas inusitadas e raras,
sempre foi um dom compartilhado apenas entre meu pai e eu.
Faz muito tempo que não entro no
quartinho. Não me lembro mais o que está guardado ali e nem quais novas
relíquias apareceram. Só descubro quando ele vem me mostrar especificamente uma
novidade ou outra. Algumas até ficam comigo. Tenho uma pedra pequena meio
marrom meio lilás no meu estojo de canetas. Ela está metade esculpida metade
bruta. Quando ele me ofereceu esta, poucos meses atrás, não pude deixar de
lamentar o sumiço da minha antiga coleção de pedras. Eu tinha muitas. Elas
enchiam um pote grande de margarina Qualy, a tampa estava até estufada, eu me
lembro. Eu era criança. Tinha pedras pequenininhas, muitas, e as grandes eram a
principal atração. Lembro-me bem da pedrona branca meio transparente meio
esfarelada nas pontas. Eu lavava e enxugava uma a uma, assim como lavava e
enxugava numa bacia vermelha a minha coleção de anjinhos de resina e porcelana.
Eu sempre tive gosto para as
coleções. O caso é que o pote de pedras sumiu. Já revirei o outro quartinho-,
onde estão as bonecas velhas, os cadernos velhos, alguns móveis velhos-, não
achei. Faz tempo. Os anjos continuam na mesinha ao pé da cama no meu antigo
quarto.
Não sei bem o que ele está fazendo
ali, de chapéu de palha. Espio pela janela aberta, de frente para a
jabuticabeira no quintal. Faz pouco tempo ele reformou vários móveis; tudo
sempre pôde ser reaproveitado, hoje ele consertou um guarda-chuva, há muito
tempo atrás me lembro dele sentado num banquinho tecendo a rede de pesca. Sempre
quis aprender a tecer uma rede como ele, assim como sempre quis aprender a
costurar como a minha mãe.
Não sei exatamente o que há hoje
dentro do quartinho. Não sei exatamente que mistérios estão escondidos atrás daquelas
portas, que ficam atrás da jabuticabeira; as portas dos
depósitos/museus/lembranças. Não sei bem por que estou espiando. O que sei bem
é o que minha vista alcança: um homem de costas, sem camisa, com um grande
chapéu de palha na cabeça, meio dentro meio fora de um pequeno quarto de porta
cinza, banhado pelo sol da tarde que perpassa os galhos da jabuticabeira
carregada e esbarra nas telhas avermelhadas, que abrigam o mistério.