domingo, 10 de agosto de 2014

Coleções

         São três da tarde. Ele está debaixo do sol usando um chapéu de palha. Ele entra e sai do seu quartinho de ferramentas e bugigangas. Minha mãe diria velharias. Eu diria antiguidades. Quando éramos crianças, eu e minha irmã chamávamos o quartinho de casinha. Era uma espécie de depósito onde se guardava tudo que não tinha mais lugar dentro de casa. Da casa de verdade.
            Quando nos mudamos a casinha dividiu-se em duas. Transformou-se nos dois quartinhos no quintal. Um era o depósito e o outro virou o quartinho do meu pai. Ali tem de tudo. Não só o que não tem mais espaço dentro de casa, mas também aquilo que nunca entrou. Todas as tralhas- diria minha mãe outra vez-, que ele acha por aí, na rua, na estrada, no mato durante as pescarias; objetos sempre úteis para ele de alguma forma e às vezes outros itens exóticos, estes sempre compartilhados comigo.
            Minha irmã nunca deu bola e minha mãe nunca teve paciência. A disposição para as pedras coloridas ou engraçadas ou de formatos estranhos, para as frutas esquisitas, para as revistas antigas, para as moedas desenterradas, para as sementes de plantas inusitadas e raras, sempre foi um dom compartilhado apenas entre meu pai e eu.
            Faz muito tempo que não entro no quartinho. Não me lembro mais o que está guardado ali e nem quais novas relíquias apareceram. Só descubro quando ele vem me mostrar especificamente uma novidade ou outra. Algumas até ficam comigo. Tenho uma pedra pequena meio marrom meio lilás no meu estojo de canetas. Ela está metade esculpida metade bruta. Quando ele me ofereceu esta, poucos meses atrás, não pude deixar de lamentar o sumiço da minha antiga coleção de pedras. Eu tinha muitas. Elas enchiam um pote grande de margarina Qualy, a tampa estava até estufada, eu me lembro. Eu era criança. Tinha pedras pequenininhas, muitas, e as grandes eram a principal atração. Lembro-me bem da pedrona branca meio transparente meio esfarelada nas pontas. Eu lavava e enxugava uma a uma, assim como lavava e enxugava numa bacia vermelha a minha coleção de anjinhos de resina e porcelana.
            Eu sempre tive gosto para as coleções. O caso é que o pote de pedras sumiu. Já revirei o outro quartinho-, onde estão as bonecas velhas, os cadernos velhos, alguns móveis velhos-, não achei. Faz tempo. Os anjos continuam na mesinha ao pé da cama no meu antigo quarto.
            Não sei bem o que ele está fazendo ali, de chapéu de palha. Espio pela janela aberta, de frente para a jabuticabeira no quintal. Faz pouco tempo ele reformou vários móveis; tudo sempre pôde ser reaproveitado, hoje ele consertou um guarda-chuva, há muito tempo atrás me lembro dele sentado num banquinho tecendo a rede de pesca. Sempre quis aprender a tecer uma rede como ele, assim como sempre quis aprender a costurar como a minha mãe.
            Não sei exatamente o que há hoje dentro do quartinho. Não sei exatamente que mistérios estão escondidos atrás daquelas portas, que ficam atrás da jabuticabeira; as portas dos depósitos/museus/lembranças. Não sei bem por que estou espiando. O que sei bem é o que minha vista alcança: um homem de costas, sem camisa, com um grande chapéu de palha na cabeça, meio dentro meio fora de um pequeno quarto de porta cinza, banhado pelo sol da tarde que perpassa os galhos da jabuticabeira carregada e esbarra nas telhas avermelhadas, que abrigam o mistério.


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