sábado, 6 de setembro de 2014

De costas para tudo


            Ela é engraçada. Está sentada na cama de novo, de costas para tudo e olhando pela janela. O andar não é muito alto, mas a vista dá para o viaduto onde passam os carros e onde moram as pessoas que fumam crack. E também há aquela torre que fica mudando de cor. Eu gosto de ver a torre. O que será que ela vê lá fora? Ela já comentou sobre o céu mudando de cor e sobre como não enxerga as pessoas ali embaixo quando está sem óculos. Mas ela fica tanto tempo ali olhando. Não sei se é isso que lhe interessa. Ela se interessa pelo que está lá fora. Ela olha bem longe e em silêncio. Ela pode ficar horas em silêncio se eu a deixar ali imóvel. Se eu não entrar no quarto e fazê-la se virar e voltar para mim. Ela fica em silêncio tantas vezes. O tempo todo eu lhe pergunto sobre seus pensamentos. Ela nem sempre responde. Ela se esquiva muitas vezes. Ela parece querer ir embora, mas eu a faço ficar muito facilmente.
            Eu lhe pergunto se ela está mesmo feliz aqui hoje. Ela diz que sim. Ela parece um tanto sem rumo ao mesmo tempo em que parece muito decidida e demonstra certa teimosia. Eu falo sobre como acho linda sua pele branca e como me atrai sua delicadeza. Ela parece agradecida, mas não muito feliz. Ela parece querer ouvir mais coisas a seu respeito. Coisas que não consigo adivinhar quais são. Quando lhe falo sobre como esteve mal-humorada de manhã ela se defende e parece querer me matar. Chora muito e quer ir embora. Pega suas roupas no chão. Eu a abraço e ela fica. Não parece muito feliz.
            Ela espera a noite chegar. Ela diz que nem deveria ter vindo. Ela diz que não se arrepende de ter vindo, mas que já passou da hora de ir embora. Eu peço para que passe a noite comigo. Ela quer, mas não vai ficar. Eu digo que ela tem medo. Digo isto muitas vezes. Vez ou outra ela ri, vez ou outra ela se explica e discorda. Discorda muitas vezes sobre tudo que digo a seu respeito. Não sei bem porque ficamos juntos. Ela diz que acha linda a minha boca. Eu a levo até a porta e a abraço. Em frente ao elevador ela espera olhando para mim. Parece aquele olhar através da janela. Não sei se olha para mim ou para o quadro na parede atrás de mim ou para a lembrança do quarto ou para o que quer que seja que observava, sentada na cama, de costas para tudo.

            Ela não parece muito feliz.

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