quinta-feira, 27 de março de 2014

MAR

            Foi o encontro tão esperado que nunca chegava. Na primeira vez foi tão de longe que eu nem pude sentir o seu gosto. Doía-me apenas olhar e senti-lo tão distante, ao mesmo tempo em que podia sentir o seu cheiro. Fui embora imaginando cada detalhe que eu não conhecia, cada som e cada movimento perfeito. E eu já sentia saudade. E eu sentia as gotas salgadas escorrendo pelo meu rosto. Será que as ondas tinham aquele mesmo sabor?
            Na segunda vez, meses depois, eu pude chegar tão perto que eu nem sabia o que fazer diante de tanta imensidão. O vento era forte e as ondas dançavam. A cor oscilava entre o verde e o azul. Meus pés saíram da areia e mergulharam naquele frio. Eu me senti purificada e com as mãos espalhei as gotas pelo corpo, ainda sóbrio e enxuto.
            Na terceira vez o sol brilhava tão forte que a cor era de um azul profundo e meu corpo se deixou levar pelas águas quentes. Abandonei-me com tanta satisfação que o seu gosto de fato salgado me parecia um sabor raro, misto de paixão e candura, calmaria e delírio, sabor que eu senti poucas vezes na vida. E meu encontro com o mar finalmente acontecia. E lá estávamos eu e ele. A sós.
            Na superfície eu sentia alguns raios de sol derretendo as gotas na minha pele, e o vento que movia tudo ao redor. Mas eu ainda estava sob controle. Quando eu mergulhei tudo sumiu. Não se via nada além do azul, não se ouvia nada além do canto abafado da imensidão líquida, não se sentia nada além de uma espécie de liberdade ilimitada.
            As ondas me levavam para onde elas queriam. E eu era livre para me deixar levar. Eu era livre para sentir que meu corpo flutuava, que meu corpo alcançava a plenitude, movendo-se por vontade própria e sem qualquer imposição. Sem qualquer controle.
            Eu não sei onde estavam meus pensamentos. Deviam estar bem guardados, eu não me preocupava. Eu sentia toda a vibração da liberdade. Da entrega. Eu sentia a vontade de mergulhar cada vez mais profundamente. De me transformar em água. Misturar-me. Completar-me.
                                                                                                                                             

            Era como um delírio. Era como poder tocar seu corpo sem me sentir culpada.

sábado, 22 de março de 2014

Fita Vermelha

         Mamãe se chama Helena e ontem fez 42 anos. Mamãe trabalha na fábrica e ontem ela também trabalhou. Trabalha desde moça. Eu quis dar a ela um presente de aniversário, mas não tive tempo para juntar dinheiro. Miguel e Mateus, meus irmãos, também trabalham na fábrica e também não trouxeram presentes.
         Mamãe gosta de olhar para fora da janela do nosso barraco e ver o céu azul com manchas cinzas de fumaça que se desfazem no ar e se misturam nas nuvens branquinhas. Eu também gosto de ver. Gosto de sentir que estou na fumaça e vou voando pelo ar. Talvez mamãe também sinta isso. Não pergunto, só olho as nuvens e mamãe parada a olhar pela janela, a colocar a mão no queixo e olhar.
         Às vezes, de noite, ela pega a velha caixa de madeira que tem na estante e põe-se a brincar com a fita vermelha. Eu sempre quis usar a fita vermelha no cabelo, mas mamãe nunca deixou. Eu não sei de onde essa fita vermelha veio, mas sei que sempre esteve aqui. Me lembro também de um homem de vermelho que saiu pela porta quando eu era pequenininha. Mamãe não me disse quem é.
        Ontem ela recebeu meu abraço de parabéns e chorou. Depois foi olhar a fita vermelha. Acho que a fita foi algum presente de aniversário. Acho que ela vai guardar a fita pra sempre. Vermelha. Cada vez mais desbotada.
            

sexta-feira, 21 de março de 2014

Mapa Sonoro

Parecia mar mas era avião.
Buzina, motores e apitos
Batuque na garrafa pet
E muito vento. Muito vento.
Folhas e galhos.
A sola do sapato da criança nas pedrinhas.
Um cochicho do trio de adolescentes
Um sininho teimoso e um passarinho.
Sino e sirene. Gargalhada na rua.
E o som do mar outra vez. Não! Era de avião. Outra vez.

O silêncio é uma mentira.

Esses Dias

Hoje acordei com um estranho peso sobre os ombros. Um peso enorme. Abria os olhos e sentia a vertigem. Cedia ao peso e fechava os olhos. Estando acordada precisava ficar de pé. Abria os olhos. A pressão sobre os ombros. A cabeça. Os pés no chão. Aquela vertigem outra vez.

Ontem fui acordada pela luz do sol. O dia. Radiante. Ontem eu tive a certeza de começar novas empreitadas. De mudar tudo outra vez. De me mudar. Cada pedaço. Tudo novo. Ontem eu tive forças. A noite chegou e eu estava no chão.

A sede do novo novo novo o tempo todo. O início outra vez. A mudança. A falta de forças. Aceito e encaro o mundo em um segundo e no próximo nem quero me levantar. O peso e a vertigem. Caio na cama outra vez. Quero abandonar tudo outra vez.

O recomeço infinito é exaustivo. Ciclo confuso. Desesperado. O descontrole. Meus desejos criam vida e se vão sozinhos. Me deixam com o peso nos ombros. Me deixam com a dor da inação.

Tenho fervilhado por dentro. Tenho procurado a saída. Tenho me machucado muito.