quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Suado
Molhados de suor terminam.
Apressados.
Ela calcula cada movimento.
Ele sufoca cada gemido.
O suor
O grito abafado,
Ela espera a hora certa
Ela pondera, ela pensa.
Ela quer fugir,
Ele respira. Ele se entrega.
Ele espera. Ela quer sorrir.
Os olhos tristes, perdidos,
O corpo triste, cansado.
O gemido.
O calor do quarto abafado.
O fogo do grito abafado.
O gemido triste.
Desesperado.
Molhados de suor terminam.
O gemido,
Sufocado,
sábado, 6 de setembro de 2014
De costas para tudo
Ela é engraçada. Está sentada na
cama de novo, de costas para tudo e olhando pela janela. O andar não é muito
alto, mas a vista dá para o viaduto onde passam os carros e onde moram as
pessoas que fumam crack. E também há aquela torre que fica mudando de cor. Eu gosto
de ver a torre. O que será que ela vê lá fora? Ela já comentou sobre o céu
mudando de cor e sobre como não enxerga as pessoas ali embaixo quando está sem
óculos. Mas ela fica tanto tempo ali olhando. Não sei se é isso que lhe interessa.
Ela se interessa pelo que está lá fora. Ela olha bem longe e em silêncio. Ela pode
ficar horas em silêncio se eu a deixar ali imóvel. Se eu não entrar no quarto e
fazê-la se virar e voltar para mim. Ela fica em silêncio tantas vezes. O tempo
todo eu lhe pergunto sobre seus pensamentos. Ela nem sempre responde. Ela se
esquiva muitas vezes. Ela parece querer ir embora, mas eu a faço ficar muito
facilmente.
Eu lhe pergunto se ela está mesmo
feliz aqui hoje. Ela diz que sim. Ela parece um tanto sem rumo ao mesmo tempo
em que parece muito decidida e demonstra certa teimosia. Eu falo sobre como
acho linda sua pele branca e como me atrai sua delicadeza. Ela parece
agradecida, mas não muito feliz. Ela parece querer ouvir mais coisas a seu
respeito. Coisas que não consigo adivinhar quais são. Quando lhe falo sobre
como esteve mal-humorada de manhã ela se defende e parece querer me matar. Chora
muito e quer ir embora. Pega suas roupas no chão. Eu a abraço e ela fica. Não parece
muito feliz.
Ela espera a noite chegar. Ela diz
que nem deveria ter vindo. Ela diz que não se arrepende de ter vindo, mas que
já passou da hora de ir embora. Eu peço para que passe a noite comigo. Ela quer,
mas não vai ficar. Eu digo que ela tem medo. Digo isto muitas vezes. Vez ou
outra ela ri, vez ou outra ela se explica e discorda. Discorda muitas vezes
sobre tudo que digo a seu respeito. Não sei bem porque ficamos juntos. Ela diz
que acha linda a minha boca. Eu a levo até a porta e a abraço. Em frente ao
elevador ela espera olhando para mim. Parece aquele olhar através da janela. Não
sei se olha para mim ou para o quadro na parede atrás de mim ou para a
lembrança do quarto ou para o que quer que seja que observava, sentada na cama,
de costas para tudo.
Ela não parece muito feliz.
domingo, 10 de agosto de 2014
Coleções
São
três da tarde. Ele está debaixo do sol usando um chapéu de palha. Ele entra e
sai do seu quartinho de ferramentas e bugigangas. Minha mãe diria velharias. Eu
diria antiguidades. Quando éramos crianças, eu e minha irmã chamávamos o
quartinho de casinha. Era uma espécie de depósito onde se guardava tudo que não
tinha mais lugar dentro de casa. Da casa de verdade.
Quando nos mudamos a casinha
dividiu-se em duas. Transformou-se nos dois quartinhos no quintal. Um era o
depósito e o outro virou o quartinho do meu pai. Ali tem de tudo. Não só o que não
tem mais espaço dentro de casa, mas também aquilo que nunca entrou. Todas as
tralhas- diria minha mãe outra vez-, que ele acha por aí, na rua, na estrada,
no mato durante as pescarias; objetos sempre úteis para ele de alguma forma e
às vezes outros itens exóticos, estes sempre compartilhados comigo.
Minha irmã nunca deu bola e minha
mãe nunca teve paciência. A disposição para as pedras coloridas ou engraçadas
ou de formatos estranhos, para as frutas esquisitas, para as revistas antigas,
para as moedas desenterradas, para as sementes de plantas inusitadas e raras,
sempre foi um dom compartilhado apenas entre meu pai e eu.
Faz muito tempo que não entro no
quartinho. Não me lembro mais o que está guardado ali e nem quais novas
relíquias apareceram. Só descubro quando ele vem me mostrar especificamente uma
novidade ou outra. Algumas até ficam comigo. Tenho uma pedra pequena meio
marrom meio lilás no meu estojo de canetas. Ela está metade esculpida metade
bruta. Quando ele me ofereceu esta, poucos meses atrás, não pude deixar de
lamentar o sumiço da minha antiga coleção de pedras. Eu tinha muitas. Elas
enchiam um pote grande de margarina Qualy, a tampa estava até estufada, eu me
lembro. Eu era criança. Tinha pedras pequenininhas, muitas, e as grandes eram a
principal atração. Lembro-me bem da pedrona branca meio transparente meio
esfarelada nas pontas. Eu lavava e enxugava uma a uma, assim como lavava e
enxugava numa bacia vermelha a minha coleção de anjinhos de resina e porcelana.
Eu sempre tive gosto para as
coleções. O caso é que o pote de pedras sumiu. Já revirei o outro quartinho-,
onde estão as bonecas velhas, os cadernos velhos, alguns móveis velhos-, não
achei. Faz tempo. Os anjos continuam na mesinha ao pé da cama no meu antigo
quarto.
Não sei bem o que ele está fazendo
ali, de chapéu de palha. Espio pela janela aberta, de frente para a
jabuticabeira no quintal. Faz pouco tempo ele reformou vários móveis; tudo
sempre pôde ser reaproveitado, hoje ele consertou um guarda-chuva, há muito
tempo atrás me lembro dele sentado num banquinho tecendo a rede de pesca. Sempre
quis aprender a tecer uma rede como ele, assim como sempre quis aprender a
costurar como a minha mãe.
Não sei exatamente o que há hoje
dentro do quartinho. Não sei exatamente que mistérios estão escondidos atrás daquelas
portas, que ficam atrás da jabuticabeira; as portas dos
depósitos/museus/lembranças. Não sei bem por que estou espiando. O que sei bem
é o que minha vista alcança: um homem de costas, sem camisa, com um grande
chapéu de palha na cabeça, meio dentro meio fora de um pequeno quarto de porta
cinza, banhado pelo sol da tarde que perpassa os galhos da jabuticabeira
carregada e esbarra nas telhas avermelhadas, que abrigam o mistério.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Segunda-Feira
Ele
usava lápis embaixo dos olhos. Barbudo e cabeludo. Me olhava de longe. Desviei o
olhar um pouco atrasada. Estava colocando as compras no caixa. Me agachava e
levantava diversas vezes com um iogurte ou um pacote de papel higiênico nas
mãos. Na água de côco percebi que ele tinha se mudado para a minha fila. Uma senhora
com quatro sucos de soja nos separava.
Coloquei ali as compras da semana um
tanto encabulada. Evitava olhar para ele, mas estava curiosa. Eu sei que o meu
vestido longo e amarelo chamava atenção. Era uma figura colorida em meio às
compras da tarde. Seus olhos e sua barba também chamavam atenção. Era algo
familiar para mim em meio à confusão do supermercado.
Eu empacotava tudo apressada, mas
não tinha horário algum marcado. Ele me observava enquanto comia uma ameixa
calmamente. Era uma figura engraçada. Era uma dessas imagens misteriosas que eu
gosto de guardar na memória. Era familiar não sei bem por que. Era atraente na
sua calma, na sua curiosidade tranqüila. Os olhos fixos em mim.
Eu estava quase de saída quando ele,
indo pagar sua compra pequena, se jogou em frente às minhas sacolas. Pedi licença
e fui embora carregada. Era segunda-feira. Era fim de tarde. Era um dia comum. Era
só mais um olhar que deveria se manter desconhecido.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Casamento
Essa noite eu sonhei com meu casamento.
Aos 14 anos eu sonhava com meu casamento repetidas vezes. Naquela época
sonhava que eu entrava na igreja, vestida de noiva e, ao chegar ao altar dava a
mão ao meu noivo. O curioso é que
sonhava exatamente isto noites seguidas e nunca conseguia ver o rosto daquele
noivo. Depois de algum tempo estes sonhos foram embora. Não me lembro de ter
voltado a sonhar algo parecido.
Hoje tenho 24 anos e na noite passada sonhei com meu casamento. Desta vez
o cenário era outro. A igreja não aparecia. Não via o noivo novamente, mas eu
sabia bem quem ele era. O recorte deste sonho era o do momento seguinte à
cerimônia.
Eu entrava sozinha num quarto à meia-luz, - um quarto que lembrava o meu
aos 14 anos-, e já entrava me desvencilhando do vestido de noiva e falando com
alguém que me ouvia de fora, ou falando sozinha, não tenho certeza. Eu me
olhava no espelho e apressada começava a tirar o corpete branco. Então me dava
conta de que não era exatamente um vestido de cima abaixo. Era uma
blusa-corpete e uma saia longa. Tudo branco, mas não era um, eram dois.
Desamarrado o corpete eu me olhava de novo no espelho, observando minhas
costas. Ainda não tinha tirado a blusa por completo. Virava de frente e dizia a
mim mesma: - Será que não devo tirar uma foto e colocar na internet? Se não
fizer isso ninguém vai saber que me casei. Olhava-me no espelho, pensativa, não
usava muita maquiagem e não sorria muito.
Com a blusa nas mãos dizia: - Posso usar outras cores de saia com essa
blusa também. Melhor guardá-la!
Imaginava-me então vestindo azul, vermelho, amarelo. O quarto continuava
pouco iluminado. Eu continuava pensativa. Continuava vestindo a saia branca. Os
seios de fora. A fotografia não compartilhada.
A sensação burocrática de um contrato assinado. A sensação esquisita de
que nada mudou. Não me sentia casada. Não me sentia feliz. Nem triste. Não me
sentia diferente. Não me sentia.
O quarto continuava escuro. O quarto continuava bagunçado. O quarto
continuava aquele que não era mais meu.
Na verdade não tinha ninguém lá fora.
domingo, 18 de maio de 2014
Eu Sou
Um dia foi frágil
Um dia foi rígida
Superfície
Estranha
Com fio de aço
Por dentro
Fina.
Um dia foi criança
Roupa suja pintada
Cola. Dedos grudando.
Brinquedo
Singela
A criança
Cria a fantasia com as mãos
O cheiro seco e a beleza artificial
se desintegrando.
Vai virando amarela.
Vai virando negra.
Misteriosa
Sorridente
Maleável. De papel.
Foi usada. Usou.
Foi com o vento
Voltou
Veio cavalgando.
Virou Exu. Se abriu.
Virou Ossaim.
É sua própria cura.
Eu sou.
Um dia foi rígida
Superfície
Estranha
Com fio de aço
Por dentro
Fina.
Um dia foi criança
Roupa suja pintada
Cola. Dedos grudando.
Brinquedo
Singela
A criança
Cria a fantasia com as mãos
O cheiro seco e a beleza artificial
se desintegrando.
Vai virando amarela.
Vai virando negra.
Misteriosa
Sorridente
Maleável. De papel.
Foi usada. Usou.
Foi com o vento
Voltou
Veio cavalgando.
Virou Exu. Se abriu.
Virou Ossaim.
É sua própria cura.
Eu sou.
quinta-feira, 27 de março de 2014
MAR
Foi
o encontro tão esperado que nunca chegava. Na primeira vez foi tão de longe que
eu nem pude sentir o seu gosto. Doía-me apenas olhar e senti-lo tão distante,
ao mesmo tempo em que podia sentir o seu cheiro. Fui embora imaginando
cada detalhe que eu não conhecia, cada som e cada movimento perfeito. E eu já
sentia saudade. E eu sentia as gotas salgadas escorrendo pelo meu rosto. Será
que as ondas tinham aquele mesmo sabor?
Na segunda vez, meses depois, eu
pude chegar tão perto que eu nem sabia o que fazer diante de tanta imensidão. O
vento era forte e as ondas dançavam. A cor oscilava entre o verde e o azul.
Meus pés saíram da areia e mergulharam naquele frio. Eu me senti purificada e
com as mãos espalhei as gotas pelo corpo, ainda sóbrio e enxuto.
Na terceira vez o sol brilhava tão
forte que a cor era de um azul profundo e meu corpo se deixou levar pelas águas
quentes. Abandonei-me com tanta satisfação que o seu gosto de fato salgado me
parecia um sabor raro, misto de paixão e candura, calmaria e delírio, sabor que
eu senti poucas vezes na vida. E meu encontro com o mar finalmente acontecia. E
lá estávamos eu e ele. A sós.
Na superfície eu sentia alguns raios
de sol derretendo as gotas na minha pele, e o vento que movia tudo ao redor.
Mas eu ainda estava sob controle. Quando eu mergulhei tudo sumiu. Não se via
nada além do azul, não se ouvia nada além do canto abafado da imensidão
líquida, não se sentia nada além de uma espécie de liberdade ilimitada.
As ondas me levavam para onde elas
queriam. E eu era livre para me deixar levar. Eu era livre para sentir que meu
corpo flutuava, que meu corpo alcançava a plenitude, movendo-se por vontade
própria e sem qualquer imposição. Sem qualquer controle.
Eu não sei onde estavam meus
pensamentos. Deviam estar bem guardados, eu não me preocupava. Eu sentia toda a
vibração da liberdade. Da entrega. Eu sentia a vontade de mergulhar cada vez
mais profundamente. De me transformar em água. Misturar-me. Completar-me.
Era como um delírio. Era como poder
tocar seu corpo sem me sentir culpada.
sábado, 22 de março de 2014
Fita Vermelha
Mamãe
se chama Helena e ontem fez 42 anos. Mamãe trabalha na fábrica e ontem ela
também trabalhou. Trabalha desde moça. Eu quis dar a ela um presente de
aniversário, mas não tive tempo para juntar dinheiro. Miguel e Mateus, meus
irmãos, também trabalham na fábrica e também não trouxeram presentes.
Mamãe gosta de olhar para fora da
janela do nosso barraco e ver o céu azul com manchas cinzas de fumaça que se
desfazem no ar e se misturam nas nuvens branquinhas. Eu também gosto de ver.
Gosto de sentir que estou na fumaça e vou voando pelo ar. Talvez mamãe também
sinta isso. Não pergunto, só olho as nuvens e mamãe parada a olhar pela janela,
a colocar a mão no queixo e olhar.
Às vezes, de noite, ela pega a velha
caixa de madeira que tem na estante e põe-se a brincar com a fita vermelha. Eu
sempre quis usar a fita vermelha no cabelo, mas mamãe nunca deixou. Eu não sei
de onde essa fita vermelha veio, mas sei que sempre esteve aqui. Me lembro
também de um homem de vermelho que saiu pela porta quando eu era pequenininha.
Mamãe não me disse quem é.
Ontem ela recebeu meu abraço de
parabéns e chorou. Depois foi olhar a fita vermelha. Acho que a fita foi algum
presente de aniversário. Acho que ela vai guardar a fita pra sempre. Vermelha.
Cada vez mais desbotada.
sexta-feira, 21 de março de 2014
Mapa Sonoro
Parecia mar mas era avião.
Buzina, motores e apitos
Batuque na garrafa pet
E muito vento. Muito vento.
Folhas e galhos.
A sola do sapato da criança nas pedrinhas.
Um cochicho do trio de adolescentes
Um sininho teimoso e um passarinho.
Sino e sirene. Gargalhada na rua.
E o som do mar outra vez. Não! Era de avião. Outra vez.
O silêncio é uma mentira.
Buzina, motores e apitos
Batuque na garrafa pet
E muito vento. Muito vento.
Folhas e galhos.
A sola do sapato da criança nas pedrinhas.
Um cochicho do trio de adolescentes
Um sininho teimoso e um passarinho.
Sino e sirene. Gargalhada na rua.
E o som do mar outra vez. Não! Era de avião. Outra vez.
O silêncio é uma mentira.
Esses Dias
Hoje acordei com um estranho peso sobre os ombros. Um peso enorme. Abria os olhos e sentia a vertigem. Cedia ao peso e fechava os olhos. Estando acordada precisava ficar de pé. Abria os olhos. A pressão sobre os ombros. A cabeça. Os pés no chão. Aquela vertigem outra vez.
Ontem fui acordada pela luz do sol. O dia. Radiante. Ontem eu tive a certeza de começar novas empreitadas. De mudar tudo outra vez. De me mudar. Cada pedaço. Tudo novo. Ontem eu tive forças. A noite chegou e eu estava no chão.
A sede do novo novo novo o tempo todo. O início outra vez. A mudança. A falta de forças. Aceito e encaro o mundo em um segundo e no próximo nem quero me levantar. O peso e a vertigem. Caio na cama outra vez. Quero abandonar tudo outra vez.
O recomeço infinito é exaustivo. Ciclo confuso. Desesperado. O descontrole. Meus desejos criam vida e se vão sozinhos. Me deixam com o peso nos ombros. Me deixam com a dor da inação.
Tenho fervilhado por dentro. Tenho procurado a saída. Tenho me machucado muito.
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